Lula (Foto: André Coelho / Agência O Globo)
Por Ruy Fabiano Noblat
Neste momento em que a Operação Lava Jato desconstrói a imagem de Lula,
depurando-a de todos os artifícios, instala-se uma espécie de assombro
geral nos meios intelectuais e artísticos do país, onde ainda reina
forte resistência aos fatos.
Tal depuração baseia-se em alentados registros – e o mais eloquente vem
da própria voz de Lula, captada nos recentes grampos telefônicos,
autorizados pela Justiça, em que exibe solene desprezo pelas
instituições, em especial o Judiciário.
Não se deve apenas aos truques do marketing político-eleitoral a
construção da imagem do falso herói. Bem antes do advento dos Duda
Mendonça e João Santana, hoje às voltas com a Justiça, Lula já
desfrutava de altíssimo conceito redentor, esculpido no âmbito
universitário, onde o projeto do PT foi engendrado.
E aqui cabe repetir o bordão lulista: nunca antes neste país, um
presidente da República foi brindado com tantos títulos honoris causa
por parte de universidades, mesmo sem ter dado – ou talvez por isso
mesmo - qualquer contribuição à atividade intelectual.
Ao contrário: Lula e seus artífices difundiram o culto à ignorância e
ao improviso, submetendo a atividade intelectual à condição subalterna
de mera assessora de um projeto populista.
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A epopeia de alguém que veio de baixo e galgou o mais alto cargo da
República fascinou e comoveu a intelligentsia brasileira, que o
transfigurou em gênio da raça. Pouco interessava o como e o quê fez no
poder – questões que agora se colocam de maneira implacável -, mas o
simples fato de que a ele chegou.
O símbolo falsificava o ser humano por trás dele. E o país embarcou
numa ilusão de que agora, dolorosamente – e ainda com espantosas
resistências, – começa a desembarcar.
Fernando Henrique Cardoso, símbolo da nata acadêmica nacional, deixou
suas digitais nesse processo. A eleição de Lula, em 2002, contou com sua
colaboração. Como se recorda, FHC desengajou-se da campanha
presidencial de José Serra, dizendo a quem quisesse ouvi-lo: “Agora, é a
vez de Lula”.
Conta-se que, naquela ocasião, ao recebê-lo em Palácio, chegou a
oferecer-lhe antecipadamente a cadeira presidencial. Era o sociólogo
sucedido pelo operário, ofício que Lula já não exercia há mais de duas
décadas. As cenas da transmissão da faixa presidencial, encontráveis no
Youtube, mostram um Fernando Henrique ainda mais deslumbrado que seu
sucessor.
Lula, na ocasião, disse-lhe: “Fernando, aqui você terá sempre um
amigo”. No dia seguinte, cessou o entusiasmo: o ministro-chefe da Casa
Civil, José Dirceu, em sua primeira entrevista, mencionava a “herança
maldita” do governo anterior, frase repetida como mantra até os dias de
hoje.
E o “amigo” não mais pouparia seu antecessor, por quem cultiva
freudiana hostilidade. A erudição, ao que parece, o incomoda, embora a
vida lhe tenha proporcionado meios bem mais abundantes de obtê-la que a
outros grandes personagens da cultura brasileira, de origem tão modesta
quanto a sua, como Machado de Assis, Gonçalves Dias e Cruz e Souza,
mestiços que, em plena escravidão, ascenderam ao topo da vida
intelectual do país.
O mito Lula começou ainda na década dos 70, em pleno governo militar – e
contou com a cumplicidade do próprio regime, que, por ironia, o viu
como peça útil na desconstrução da esquerda, abrigada no velho MDB e em
vias de defenestrar eleitoralmente o partido governista, a Arena. O
regime extinguiu casuisticamente o bipartidarismo, de modo a esvaziar a
frente oposicionista.
A frente, em que a esquerda tinha protagonismo, entendia que não era
oportuno o surgimento de um partido de base sindical, que a esvaziaria,
diluindo os votos contrários ao regime. Lula foi peça-chave nesse
processo, concebido pelo general Golbery do Couto e Silva, estrategista
político do governo militar.
Há detalhes reveladores em pelo menos dois livros recentes: “O que sei
de Lula”, de José Nêumanne Pinto, que cobriu as greves do ABC pelo
Jornal do Brasil naquele período, e com ele conviveu; e “Assassinato de
Reputações”, de Romeu Tuma Jr., cujo pai, o falecido delegado Romeu
Tuma, então chefe do Dops, foi carcereiro de Lula, no curto período em
que esteve preso.
Tuma e Nêumanne convergem num ponto: Lula foi informante do Dops, o que
lhe facilitou a construção do PT, a cujo projeto se agregariam duas
vertentes fundamentais - a esquerda universitária paulista e o clero
católico da Teologia da Libertação.
Essa gênese explica a trajetória vitoriosa do partido: o clero
proporcionou-lhe a capilaridade das comunidades eclesiais de base e os
acadêmicos prestígio e acesso à grande mídia.
A ambos, o PT retribuiu com Lula, o símbolo proletário de que careciam
para forjar o primeiro líder de massas que a esquerda brasileira
produziu e que a levaria, enfim, a vencer eleições presidenciais. Deu
certo – e deu errado.
Lula chegou lá, mas corre o risco de concluir sua trajetória na cadeia.
Os acertos de seu primeiro governo derivam da rara conjunção de uma
bonança econômica internacional com os ajustes decorrentes do Plano
Real. Finda a bonança e desfeitos os ajustes, restou a evidência de que
não havia (nunca houve) um projeto de governo – e tão somente um projeto
de poder.
A Lava Jato, ao tempo em que reduz Lula a seu exato tamanho, político e
moral – e, ao que se sabe, há ainda muito a vir à tona -, mostra o que
fez, à frente do PT e do país, para que esse projeto se consolidasse e o
eternizasse como pai dos pobres – uma caricatura de Vargas, com mais
dinheiro e menos ideias.
De gênio político, beneficiário de uma conjuntura que desperdiçou, lega
à posteridade sua grande obra: Dilma Roussef, personagem patética que
tirou do anonimato para compor um dos momentos mais trágicos da história
da República.
O historiador do futuro terá o desafio de decifrar o que levou a
inteligência do país – cujo dever de ofício é antever e evitar tais
desvios - a embarcar num projeto suicida, a serviço da estupidez, não
hesitando em satanizar os que a ele se opõem.
Ruy Fabiano Noblat é jornalista,
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