A captação de recursos pela cantora, via Lei Rouanet, reacende
debate sobre financiamento cultural; antes de sua distorção existe um
sequestro das pautas
Marlon, retratado em “Rastro de Lama”,
sobre catástrofe em MG (Foto: Helena Wolfenson).
sobre catástrofe em MG (Foto: Helena Wolfenson).
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
De um lado, Claudia Leitte quer biografar Claudia Leitte. Valor
pretendido: R$ 356 mil. A verba chegou a ser aprovada pelo Ministério da
Cultura, conforme a Lei Rouanet. O ministro Juca Ferreira já avisou que
vai barrar a liberação; a própria Claudia disse que desistiu.
Mas a notícia sobre o caso reacendeu o debate sobre financiamento da
cultura. É razoável uma cantora com visibilidade global se beneficiar,
de alguma forma, de recursos públicos polpudos para celebrar seu
narcisismo? A sociedade que chiou contra a leitura de poemas por Maria
Bethânia – com financiamento similar – apoiará a pretensão da popstar?
Do outro lado, Aline e Helena pretendem retratar Ricardo e Marlon.
Eles são moradores de Bento Rodrigues, o povoado em Mariana (MG)
destruído pela mescla de lama e resíduos da mineradora Samarco. Perderam
tudo com o rompimento da barragem, em novembro. Aline Lata e Helena
Wolfenson tentam captar R$ 50.650 por vaquinha coletiva, pelo site
Catarse, para retratar, a partir da vida dos dois jovens, a catástrofe
socioambiental. O filme se chamará “Rastro de Lama“.
Essa verba se refere a uma das etapas do projeto, que prevê imersão das
duas cineastas em Minas e no Espírito Santo e a realização de um curta.
As duas histórias sintetizam movimentos diversos da cultura
brasileira. Seja no campo dos objetivos, seja no campo dos métodos
utilizados para a captação de recursos. E há alguma coisa invertida
nesse sistema de equações. A primeira delas diz que 1 x 1 = 350. A
segunda equação diz o seguinte: 2 x 2 x um povoado inteiro x a maior
catástrofe ambiental do Brasil = 50. Não se trata apenas de uma
distorção na lei cultural, no fato de que a Lei Rouanet caducou (e de
que a sociedade perdeu seu discernimento). Existe um outro tipo de
rapto. Um rapto da pauta.
Porque, com tudo isso, estamos discutindo Claudia Leitte. Sim, temos
de utilizar o caso como motivo para rediscussão dos paradigmas. Mas, por
enquanto, estamos a discutir Claudia Leitte, tornando a tentativa dela
de obter R$ 350 mil talvez um dos casos mais empolgantes de sua
biografia precoce. Não estamos discutindo Ricardo e Marlon, os dois
perfis que Aline e Helena escolheram para sintetizar a catástrofe de Mariana.
Não apenas Ricardo e Marlon: mas as centenas ou milhares de Ricardos e
Marlons espalhadas pelo território que esperam a vez de serem
retratados, esmiuçados.
A cultura brasileira foi sequestrada. Sim, em um conceito mais amplo
ela está lá, indomável, manifestando-se apesar dos apertos financeiros,
improvisada num batuque e num spray, em um bloco insurrecto ou em um
verso teimoso do rap. Mas a cultura brasileira percebida pelos meios de
comunicação foi sequestrada pelo poder político e econômico, a serviço
de uns poucos privilegiados. O Ministério da Cultura e o jornalismo
cultural e a percepção das supostas elites culturais sofrem do mesmo
drama, do mesmo vício de origem. A história oficial da cultura
brasileira se repete como arremedo.
É claro que estamos simplificando o fenômeno, em torno de dois casos
emblemáticos, para efeitos didáticos. A última fase da captação de Aline
Lata e Helena Wolfenson prevê captação de recursos por edital. E elas
ainda não representam os excluídos dos excluídos do circuito do
financiamento cultural. Mas a questão é que elas não terão essa
publicidade espontânea que tem Claudia Leitte, que terá reforçado a sua
marca (em meio a esse metaclaudioleitismo da cultura brasileira) mesmo
perdendo a boquinha dos R$ 350 mil. Os meros mortais da cultura precisam
passar o chapéu várias vezes, enredar-se num arsenal de burocracia para
tentar manifestar sua arte.
Existe aí um problema de agendamento da notícia misturado com a
distorção do modelo de captação de recursos. Este mesmo artigo terá sido
lido pela maioria por causa de Claudia Leitte, não por causa de Aline
ou Helena ou de Ricardo e Marlon ou por causa do massacre social,
ambiental, agrícola e cultural (por exemplo, destruição de obras sacras)
promovido por uma mineradora em Mariana. Assim como não conhecemos o
nome nem de 1% das etnias indígenas brasileiras. Giramos midiaticamente
em torno de uns poucos umbigos alheios, como se Nelson Rubens fosse o
grande crítico cultural do país, sob o patrocínio da Vale.
E chegou a hora de rever esse enredo.
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