Por: Diogo Schelp, de Caracas
Líderes opositores comemoram a divulgação dos resultados que confirmaram a vitória na eleição legislativa(Carlos Garcia Rawlins/Reuters)
Se a Venezuela é uma ditadura, ou algo próximo disso, como a
oposição conseguiu ganhar as eleições legislativas deste domingo, 6 de
dezembro? A explicação passa pelas características únicas do autoritarismo
chavista, mas também pela eficiente estratégia que a oposição adotou para
reduzir o dano das maracutaias eleitorais no resultado final.
O
presidente venezuelano Hugo Chávez, morto em 2013, criou um estilo de governar
que tirava sua legitimidade de uma aprovação popular aparentemente inabalável,
confirmada seguidas vezes por meio do voto. Em dezessete anos de governo
chavista, foram realizadas dezesseis eleições - para presidente, para
governador, para prefeito, para a Assembleia Nacional, além de plebiscitos. O
ex-presidente Lula se referia a isso quando disse, em 2005, que na Venezuela
havia "democracia em excesso". Nada mais falso. As eleições, na
Venezuela, servem para dar um verniz democrático ao regime, mas elas não
transcorrem de maneira livre e justa.
As
condições para a campanha eleitoral são desiguais. O governo utiliza em peso os
recursos públicos para garantir a dependência da população em relação ao
Estado, por meio de programas distributivistas (as chamadas misiones), do inchaço da
máquina pública e da criação de milícias, que empregam até idosos, cuja missão
é defender a "revolução". Além disso, o governo controla os canais de
TV abertos - mesmo os que não pertencem ao Estado não se atrevem a fazer críticas
ao governo, para não perder sua outorga, como já ocorreu no passado. Só há um
jornal diário no país que questiona as políticas governamentais.
Mas o mais
grave é a ausência de independência entre os poderes. O Executivo, sob o
sistema chavista, controla o Ministério Público e os tribunais, desde a
primeira instância até o Tribunal Supremo de Justiça. O CNE (Conselho Nacional
Eleitoral) é totalmente subserviente aos mandos do governo. A cada eleição, o
órgão máximo da justiça eleitoral cria novas dificuldades para a oposição ou
fecha os olhos para violações evidentes da lei.
As eleições
deste ano, por exemplo, já estavam viciadas muito antes da abertura das urnas,
porque o peso dos distritos eleitorais foram alterados, com base em supostas
modificações demográficas, com o único propósito de favorecer os candidatos
chavistas. Distritos com grande número de eleitores da oposição passaram a ter
direito a menos cadeiras na Assembleia, enquanto aqueles de maior controle
chavista ganharam mais vagas.
Ao longo da
jornada eleitoral deste domingo, a reportagem de VEJA percorreu mais de duas
dezenas de centros de votação na capital, Caracas. Nos bairros mais pobres,
havia sempre um toldo vermelho com cabos eleitorais chavistas a poucos metros
dos centros de votação. Em um caso, o toldo estava exatamente em frente ao
local de votação. Isso é absolutamente irregular pelas regras eleitorais do
país, que proíbe a campanha boca de urna a menos de 200 metros dos centros de
votação, mas a Guarda Nacional Bolivariana e a polícia nada faziam para coibir
o fenômeno.
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O regime
chavista se utiliza também da estratégia da intimidação para afastar os eleitores
da oposição. Os venezuelanos desconfiam que o voto, na verdade, não é secreto,
pois é preciso fazer a identificação biométrica antes de se dirigir para a urna
eletrônica. Essa desconfiança tem razão de ser: no passado, as assinaturas para
um referendo que pretendia revogar o mandato de Hugo Chávez foram tornadas
públicas por um deputado chavista e utilizadas para demitir funcionários
públicos e excluir empresários de licitações governamentais. Valendo-se dessa
desconfiança, alguns colectivos chavistas, como são chamadas as
gangues armadas ligadas ao governo, ocuparam centros de votação em diversos
pontos do país. É possível imaginar o temor dos eleitores de votar em um lugar
tomado por civis armados e hostis. Até o meio-dia do dia 6, havia quinze centros
de votação nessas condições. O CNE ignorou esses episódios.
Mas o
momento mais delicado e vulnerável a fraudes é o do fechamento dos centros de
votação e das urnas. Em outras eleições, muitas urnas permaneciam abertas por
várias horas mesmo depois de as portas dos centros terem sido fechadas para os
eleitores. Quando caía a noite e as ruas se esvaziavam, chegavam ônibus cheios
de pessoas trazidas por militantes chavistas que eram levadas para dentro dos
centros com o propósito de votar ilegalmente pelos eleitores que não haviam
comparecido às urnas.
Nas
eleições deste domingo, a oposição fez uma complexa operação para impedir esse
tipo de fraude. Organizou-se uma vasta rede de observadores (testigos,
ou testemunhas), cadastrados junto ao CNE, cuja missão era permanecer dentro
dos centros de votação após o encerramento do pleito até que se fechassem as
urnas. Este momento é importante por dois motivos: primeiro, porque permite aos
observadores conferir a contagem eletrônica dos votos, que é impressa instantaneamente,
e segundo porque lhes dá a chance de exigir, como manda a lei, que se abra mais
da metade das urnas convencionais, onde se depositam as cédulas de papel que
servem para auferir a votação digital.
Além dos testigos, alguns partidos
políticos de oposição mantiveram milhares de observadores na maioria dos
centros de votação do país. Esses cidadãos enviavam mensagens de texto com
informações simples sobre o andamento da votação, inclusive com alertas de
fraude, para os "bunkers" da oposição. As mensagens eram recebidas e
catalogadas automaticamente por programas de computador.
Toda essa
rede de informantes permitiu à oposição ter uma noção muito acurada dos
resultados da eleição muito antes do anúncio oficial do CNE, que só foi feito
depois da meia-noite. Às 23h, na sede de um partido em Caracas, os militantes
já comemoravam em voz baixa o que estimavam ser a vitória de 113 deputados de
oposição. Apesar de otimistas, davam como certo que algumas dessas cadeiras
seriam solapadas de última hora na contagem da CNE, especialmente nos centros
de votação em que a diferença de votos entre o candidato chavista e o de
oposição era pequena.
Quanto à
tática de levar militantes para votar na calada da noite em nome de eleitores
que se abstiveram, a reportagem de VEJA presenciou uma cena interessante na
favela de La Vega, em Caracas. Um pouco antes de o centro de votação instalado
no colégio Amanda de Schnell ser fechado, a rua em frente já estava ocupada por
moradores tomando batidas com rum e dançando funk. Eram todos eleitores da
oposição, em um bairro que já foi majoritariamente chavista. Sua função ali era
impedir que falsos eleitores fossem trazidos para o centro de última hora. Os
moradores estavam certos de se preocupar. Afinal, o centro foi fechado às 19h
e, apesar de não haver mais nenhum eleitor votando, um capitão do exército
dizia para os observadores, como quem sugeria que era hora de ir para casa:
"Ainda vai demorar muito para as urnas serem fechadas."
A
fiscalização urna por urna feita por militantes da oposição e a coragem da
população foi o que garantiu o resultado. Seria muito difícil para o CNE
manipular os números em nível nacional depois disso. Foi a vitória da
informação.
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